released December 3, 2018

Antes Dementes é uma ideia de projeto sonoro individual com 30 anos de existência, mas com atividade reduzida. Esta é a quarta vez que sai do ''quarto''. Sempre sob a chancela da ADC, os ambientes criados através de manipulação de sons e ruídos de forma assumida e marcadamente mínima, na técnica e na diversidade, constituem uma transparência de alma.
''passing through'' tem o tempo como fio condutor, sendo esta afirmação reconhecidamente uma redundância, pois a inexorabilidade da seta do tempo e o correspondente aumento de entropia são uma inevitabilidade que dispensa o subsídio de qualquer guia. A inocência, a consciência, o desprendimento e a (in)segurança são o seu objeto e in articulo mortis o princípio do seu fim.

A.D., Dezembro 2018

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Passing Through é um trabalho digressivo.
Movendo-se entre o minimalismo e a eletrónica imersiva, o álbum é entretecido de discretas revoluções, denunciadoras da ação do tempo e da implacável erosão que este opera sobre nós. Se aqui existe uma lógica vertebrada, ela parece advir da progressão vivencial latente em cada um dos dez temas.
Não obstante esse sentido evolutivo (e necessariamente errático) que é inerente à existência humana, Passing Through é também um espaço amniótico, povoado de imagens suspensas e difusas, por vezes de cariz fantasmático. À medida que percorremos as diversas estâncias que o compõem, chegam-nos ecos, imagens volúveis, emanadas de uma distância imprecisa; mas, a par dessas formas incorpóreas e cambiantes, somos confrontados com uma forte imagética, escorada na densidade e no cromatismo, no orgânico e no tangível.
É nesse movimento pendular, polarizado entre a delineação rigorosa e o traço esmaecido, que reside a principal força deste disco. Se é verdade que algumas camadas insinuam corporizar-se e expor a sua textura, outras, mais avessas, esvaem-se por entre os dedos, não ocultando a sua faceta aquosa e ondulante.
Pelo seu caráter mutante, a audição deste trabalho é um exercício aberto, possibilitador de abordagens diferenciadas. Constitui seguramente uma jornada pelos recessos da psyche e uma visitação aos espetros que a habitam; mas a sua enunciação configura igualmente um tributo, ainda que enviesado, a diversas memórias musicais que repousam no nosso inconsciente, emergindo agora transmudadas — quase sempre irreconhecíveis —, no que ainda preservam de referente estético.
A despeito das conjeturas e dos territórios interpretativos que legitimamente possamos eleger, em Passing Through sente-se o lastro da finitude, imposta pela paciente maturação de kronos e pelo seu avanço irreprimível. Porém, essa progressão demorada, tendente a um fim, forjada tanto no pretérito como no devir, nunca fica refém de uma visão nihilista, da negação absoluta, porquanto nela irrompe também o clarão e o lampejo: o estremecimento que perverte qualquer trajetória tida de antemão como pressentível.
É essa fulguração — esse gesto repentino e assombrado, que revela e calcina a um só tempo —, que confere um cunho singular a este trabalho. [Ouça-se «Sleeping in a Shell», «As Soon…» ou «In articulo…», a título de exemplo.]
Aqui, o rigor mortis terá um caráter dual, não apenas por corroborar uma vulnerabilidade — substanciada no declínio e na morte —, mas por ser também o indício de um gesto primordial, de um retorno continuamente empreendido, feito de múltiplos caminhos e digressões.

Paulo Vicente, Dezembro 2018